15.6.08

Escutatória

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que"não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É precisotambém não ter filosofia nenhuma”. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como sãoas coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o AlbertoCaeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é precisotambém que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz semlogo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gentetem a dizer.Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansadaconsideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer,que é muito melhor.Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante esutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os EstadosUnidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios.Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Ospianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados emsilêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéiasestranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, derepente, alguém fala. Curto. Todos ouvem.Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria umgrande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que elejulgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que ooutro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira:"Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que vocêfalou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quandovocê terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi oque você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muitotempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que vocêfalou". Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é piorque uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamentetudo àquilo que você falou". E assim vai a reunião.Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausênciade pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvircoisas que não ouvia.Eu comecei a ouvir.Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que seouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. Nofundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todosolhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia,ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importânciade saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntamnum contraponto.

Autor: Rubem Alves

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns pelo Blog ... muito bem "bolado" (estruturado), fiz um comentário em meu WeBlog sobre vocês: http://www.simplessolucoes.com.br/blog/2008/06/dica-de-leitura-%e2%80%93-respirando-endomarketing/

Bom início de semana para vocês!
Hélio Rocha